Numa tarde ensolarada de férias escolares é possÃvel encontrar dezenas de crianças e jovens, uma porção de bolas e até algumas pipas caÃdas dividindo o mesmo espaço de 83 m por 63 m: o campo da Arena Palmeirinha, em Paraisópolis, zona sul de São Paulo.
Foi num dia como esse que a Folha visitou o quadrilátero de grama sintética verde, único espaço desse tipo para prática esportiva aberto a uma comunidade com mais de 100 mil moradores.
O cenário contrasta com seu entorno, os bairros nobres da região do Morumbi, onde condomÃnios de luxo e escolas privadas exibem campos de grama natural e ginásios poliesportivos particulares.
Administrado pelo Palmeirinha, o mais tradicional time de várzea de Paraisópolis, o campo da comunidade se tornou um ponto de encontro da região. Tem agenda cheia, dividida entre aluguel para partidas, horários abertos à população e o uso por programas sociais.
Para Bianca Silva, 21, jogadora da seleção feminina de rúgbi de sete que nasceu na região, o local é o coração da comunidade.
âFoi através daquele espaço que tive oportunidade de conhecer e praticar o esporte que me levou muito além do que eu imaginavaâ, diz a atleta, hoje uma das principais revelações do rúgbi brasileiro, que tem vaga garantida nos Jogos OlÃmpicos de Tóquio em 2020.
Ela teve seus primeiros contatos com a modalidade pelo programa Rugby Para Todos, um dos três projetos sociais que utilizam o gramado.
âDiversas crianças não sonham com algo maior por não ter oportunidade de conhecer um esporte ou algo que os ajude. Os programas esportivos que a comunidade tem desenvolvido como incentivo têm um valor imenso na vida de cada criança e das famÃlias daqui, que veem o filho que por vezes foi olhado como marginal, crescer através do esporte e conhecer o mundo. à algo surrealâ, completa.
Espaços de lazer, assim como melhores condições de infraestrutura, estão entre as principais reivindicações de uma comunidade que viu, no inÃcio de dezembro, nove jovens morrerem após uma ação da PolÃcia Militar durante baile funk, em plena madrugada.
O principal responsável pela existência do campo do Palmeirinha é Francisco Luiz da Silva, 60, conhecido como Chiquinho. Presidente do time, ele trabalhou na construção do espaço, em 1982, então feito de terra batida.
Chiquinho conta que a comunidade já teve quatro campos entre as décadas de 1980 e 1990, mas que a maioria desapareceu. âOs outros viraram casas. Um virou igreja. E acho que o outro virou uma Etec (Escola Técnica Estadual).”
O Palmeirinha tem equipes que vão desde o sub-10 até o master (acima dos 50 anos). Segundo ele, mais de 120 crianças participam da escolinha de futebol da comunidade, gerida pela sua famÃlia e amigos.
Neste ano, a equipe feminina, comandada por sua filha, Mônica Melo, ficou com o vice-campeonato na Taça das Favelas, cuja final foi disputada no estádio do Pacaembu, com transmissão da TV Globo.
âUma [das jogadoras], para poder participar, teve que levar o Globoesporte para pedir autorização para o dono [da empresa em que ela trabalha]. Eu levei 26 ônibus daqui [com torcida], consegui eles com amigos. Coisa linda, inéditoâ, relembra.
Além de receber jogos de futebol, o campo é fundamental para a existência de programas sociais que buscam a inclusão por meio do esporte. O que o torna não só um espaço de lazer, mas também de transformação da comunidade.
âO mais legal é poder ver os lixeiros que passam e encostam ali e ficam assistindo para descansar. FamÃlias passam ali e perguntam com que idade as crianças podem começar. A comunidade toda fica sabendo da nossa açãoâ, conta MaurÃcio Draghi, idealizador do Rugby Para Todos.
Segundo ele, já no primeiro dia do programa, em 2004, mais de cem crianças compareceram à aula inaugural. Com mais de 200 alunos de até 18 anos, ele leva as equipes de Paraisópolis para disputar amistosos contra clubes privados. Por vezes, os jogadores do projeto acabam chamando a atenção de treinadores rivais e são contratados, chegando até a ganhar espaço nas seleções de base.
MaurÃcio conheceu Chiquinho quando era aluno do colégio Miguel de Cervantes, escola de elite que fica a cerca de três quilômetros de Paraisópolis e onde ele trabalhava.
O mesmo aconteceu com Ana Rosa, uma das coordenadoras do instituto P+A, que usa o campo do Palmeirinha para realizar o projeto Um Passe para a Educação.
âA importância [da iniciativa] é basicamente não deixar o menino ir para o tráfico, ou para o crime, ou deixar ocioso na rua. A maioria das famÃlias trabalha o dia inteiro e as crianças e os adolescentes ficam o dia todo sozinhos, as escolas são só em um perÃodo. E por que o esporte? Porque é fácil e democrático, dá para envolver todo mundoâ, diz.
O projeto dá aulas de futebol para crianças de até 17 anos. Ela entende que o campo, e o time do Palmeirinha por disponibilizar seu uso para projetos sociais, suprem em parte a lacuna de fomento ao esporte e ao lazer na região.
âTem um sentimento de pertencimento na região. E futebol é aquela coisa, a paixão. Na verdade, é um time de várzea. O pessoal se apega ao time, tem uma identidade envolvida. O futebol feminino teve bastante destaque [na Taça das Favelas]. à tudo do pessoal de Paraisópolisâ, opina.
Também utiliza o campo o Pró Paraisópolis. Cada programa tem seu acordo de permuta com o Palmeirinha, para atender às necessidades dos projetos de acordo com as possibilidades de compensação.
Sua manutenção é custeada com a ajuda do comércio local. Como a farmácia, que cede medicamentos, e a autoescola, que estampa a principal placa de publicidade dos alambrados. Além disso, nas noites de semana e durante todo o final de semana o local é alugado para jogos da várzea e campeonatos de futebol.
Além de atravessar a cidade para disputar campeonatos, o clube celebra, anualmente, a Copa da Paz, recebe equipes de várzea de todas as regiões de São Paulo, algo que, segundo Chiquinho, era impensável antigamente em razão da violência.
Há 46 anos integrante ativo do Palmeirinha, Chiquinho diz que a história do time é também a história de Paraisópolis âa instituição, inclusive, já dividiu os papeis de equipe de futebol e associação de moradores, o que não acontece mais atualmente.
Ele acredita que seria possÃvel que a comunidade colaborasse mais. Mas não reclama. Pelo contrário, agradece. Entende que nada seria possÃvel se não fosse a força e a união da população.
âAntes estava empregado e ganhava bem. Agora [sem emprego] quero ver até quando Deus vai me deixar com essa missão. Você pensa, âesqueci de mim? Que que eu estou fazendo?â Mas é gostoso ajudar as pessoas, me sinto bem para carambaâ, afirma.
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